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Direito à cidade

Publicado em 1968, O direito à cidade, de Henri Lefebvre (foto), deixou de ser apenas referência acadêmica para se tornar uma meta unificadora dos ideais de um viver mais digno nas urbes

José Antonio Apparecido Junior*

Uma das expressões mais comumente utilizadas nas atuais discussões sobre as questões urbanas se refere a um tal “direito à cidade”. Sem que se entenda bem esse conceito, há um certo consenso de que ele inclui a noção de cidades mais justas, equilibradas, inclusivas – enfim, cidades para todos, em contraposição à ideia de um espaço territorial em que muitos sustentam a boa qualidade de vida de uma minoria, às custas de sua própria existência.

O que poucos — ou relativamente poucos — sabem é que o pai da célebre expressão foi o pensador francês Henri Lefebvre (1901-1991), que se valeu dela para intitular uma obra que se tornaria clássica. O direito à cidade saiu em 1968, o ano da Primavera de Praga, das revoltas estudantis que picharam nos muros de Paris a máxima “é proibido proibir” — enfim, “o ano que não terminou”, para usar aqui o nome do famoso livro do jornalista brasileiro Zuenir Ventura, publicado em 1988. O trabalho de Lefebvre assimilou todo aquele contexto de agitação cultural e social então existente e acabou por se firmar como um dos mais seminais estudos sobre as cidades e seus destinos.

Ressalte-se que Lefebvre era um autêntico homem do seu tempo. Estudou filosofia na Sorbonne, graduando-se em 1920. Quatro anos mais tarde estava ao lado de Paul Nizan e Norbert Guterman, entre outros, em contato com grupos de vanguarda, antes de entrar para o Partido Comunista Francês (PCF), ao qual se filiaria em 1928. Foi professor de filosofia de 1930 a 1940, quando se juntou à resistência francesa contra ocupação nazista. Em 1958, a exemplo de outros intelectuais, seria expulso do PCF, no turbilhão das denúncias contra Stálin. Morreu em 1991, logo após seu nonagésimo aniversário.

Filósofo e sociólogo de orientação marxista, Lefebvre foi autor de uma extensa obra abrangendo análises do marxismo no século XX –— à luz dos textos do próprio Karl Marx, opôs-se ao estruturalismo marxista de autores como Lévi-Strauss, Michel Foucault e Louis Althusser, consagrando-se como estudioso da vivência das cidades e da sociologia rural.

As teses de Lefebvre no âmbito da sociologia urbana salientam a ação das forças produtivas sobre o espaço físico. Nessa linha de ideias, o pensador introduziu os conceitos de espaço “percebido” (perçu), correspondente à “prática espacial”, que assegura a continuidade dos assentamentos numa relativa coesão; de espaço “concebido” (conçu), identificado como as “representações do espaço”, pois ele é compreendido de acordo com representações sociais que exercem na sociedade a sua influência; e do espaço “vivido” (vécu), referente aos “espaços de representação”, identificado como o espaço dos habitantes, dos utentes, que tentam se apropriar dele pelas imagens e símbolos que o acompanham. As noções de espaço percebido, concebido e vivido são a base de estudos do britânico David Harvey e do brasileiro Milton Santos, por exemplo, grandes nomes das interpretações da realidade urbana contemporânea.

A obra de Lefevbre inspirou a criação de uma corrente de pensamento sobre o viver urbano que não se limitou nem à filosofia nem à sociologia e perpassou o urbanismo, o direito, a economia, a geografia e todos os outros saberes que estudam o fenômeno da vida nas cidades. Ele alicerçou, na verdade, um movimento que adotou, como nome agregador desse conjunto de estudos e experiências, justamente o título de seu livro: O direito à cidade. Tal obra deixou assim de ser uma referência acadêmica para se tornar uma meta unificadora de aspirações e ideais da vida urbana.

Qual seria, porém, o conteúdo principal de O direito à cidade?

Lefebvre inicia seu livro discutindo os fenômenos da industrialização e da urbanização, asseverando que o principal uso da cidade é não monetizável. A “Festa”, como ele o denomina, é o fenômeno no qual os atributos da vida urbana são consumidos improdutivamente pela população — o uso das ruas, praças, monumentos e edifícios são expressões desse atributo. Essa noção é essencial para compreensão do seu trabalho: cidade não é a sua estrutura e sim o uso que se faz do espaço urbano — e as relações que nele se estabelecem.

Ao detectar uma evidente relação entre a industrialização e a urbanização, Lefevbre constata um certo fenômeno de “implosão-explosão” da cidade. Identificando referências como “tecido urbano” e “sociedade urbana”, o pensador francês afirma que elas comportam um sistema de objetos (água, eletricidade etc.) e de valores (lazeres e costumes, por exemplo) e relaciona o processo de industrialização e de surgimento de uma burguesia à expulsão do proletariado do centro urbano — um processo, acredita, deliberado. Tal fenômeno, argumenta Lefevbre, faz com que a classe trabalhadora perca a noção de que tem direito aos benefícios da vida urbana. O ponto culminante desse processo seria a construção, por parte do Estado, de habitações nas periferias das grandes cidades, estabelecendo-se, assim, um diferente “habitat”, despido dos atributos próprios e essenciais da vida urbana — da “festa”.

O autor critica, de forma aguda, o que chama de “urbanismo dos homens de boa vontade”, que resultaria em formalismo ou estetismo; o “urbanismo dos administradores ligados ao setor público”, voltado a um desenvolvimento tecnocrático e destruidor da urbanidade; e o “urbanismo dos promotores de vendas”, que transforma a cidade, com ou sem o uso da ideologia, em mero espaço de valor de troca.

Ele censura também os estudiosos das “ciências parcelares” (história, economia, demografia, sociologia etc.), principalmente em razão do fato de seus especialistas normalmente pretenderem expandir a importância e efeitos do próprio trabalho. Caberia aos urbanistas realizar uma análise crítica dos conhecimentos parciais. Essa seria uma grande missão para mentes filosoficamente preparadas para enfrentar a ideologia urbana. Segundo Lefevbre, o conhecimento e a formulação da problemática urbana e a estratégia a ser concebida a partir desses elementos representam a articulação entre a filosofia e a cidade — com base em Hegel, ele afirma que o filósofo, considerando a realidade da vida, não tem mais direito à independência frente à prática social. Noutras palavras: sobra trabalho para todo mundo…

Então, o que seria, afinal, o tal “direito à cidade”?

Lefevbre explica que o “urbano” não pode ser definido nem como algo apegado a uma morfologia material nem passível de se separar dela. Isso quer dizer que se trata de uma forma mental e social, um fenômeno da simultaneidade, de convergência — uma qualidade que nasce de encontros entre quantidades (espaços, objetos, produtos); um conjunto de locais e relações, sendo certo que as relações é que dão significados aos locais.

Nesse sentido, o “direito à cidade” se revela como o direito à vida urbana, pressupondo-se aí uma teoria integral da cidade e da sociedade urbana que utilizam, de maneira justa, os recursos da ciência e da arte presentes nas urbes como uma verdadeira exigência, evidenciada a partir das necessidades dos seus habitantes. Postula Lefevbre, então, a orientação do crescimento urbano na direção de algo que denomina “sociedade urbana”, prospectando novas necessidades a partir exatamente das novas realidades urbanas.

Por fim, ele sustenta que o “direito à cidade” se manifesta como forma superior dos direitos à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. Tanto o direito à obra (isto é, à atividade participante) quanto o direito à apropriação (distinto do direito de propriedade), defende Lefevbre, estão implicados no direito à cidade, legitimando, desse modo, o movimento da reforma urbana — uma reforma urbana socialista, claro, conforme a sua orientação ideológica, que propõe a autogestão do urbano por seus moradores, de maneira a proporcionar a fruição dos benefícios da cidade por todos.

O livro O direito à cidade mostra-se, assim, atemporal e moderno no seu desejo de criar, precisamente, urbes mais justas, equilibradas e inclusivas. O desenvolvimento da obra explicita, por sua vez, uma leitura realizada pela ótica marxista humanista da sociedade e da economia — condição que hoje pode ser considerada em muitos aspectos anacrônica, o que, entretanto, não afasta os pontos relevantes do estudo e os achados de seu autor. Mais: Lefevbre não deixa de apontar, em certo momento, que uma quantidade superior a 80% dos franceses aspirava, ao tempo da publicação do livro, à moradia em pavilhão (os conjuntos habitacionais criados pelo processo de urbanização associado à industrialização), com uma forte maioria dizendo-se satisfeita com tais conjuntos. Apesar dessa afirmativa militar contra sua própria crítica feita ao urbanismo produzido pelos agentes que não entendem o fenômeno urbano — e que, portanto, produzem uma cidade descolada de suas necessidades e desejos —, Lefevbre é honesto o suficiente para fornecer o dado ao leitor. Com posições assim em seu trabalho, ganham todos — o autor, sua obra e os milhares daqueles que se veem, de certa maneira, influenciados por sua extraordinária obra, desde um certo “ano que não terminou”.

Publicação original

  • Um clássico das aspirações da vida urbana

    José Antônio Apparecido Junior
    Artigo publicado em Insper em 3 de março de 2023

    Resenha do livro “Direito à Cidade”, de Henri Lefebvre.

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